Viciado em Cinema e TV

quarta-feira, agosto 24, 2005

Crítica: Esquece Tudo o que Te Disse



Felizbela (Custódia Galego):"Esquece tudo o que te disse
Leva as promessas que fiz
Manter este amor é pura tolice
O teu coração nunca o quis
O nosso amor não tem futuro
Já não o queres na velhice"



Devo dizer-vos que é com muita pena minha que não vi este filme no cinema, tendo tido só a oportunidade de o conhecer quando a RTP teve uma ideia de génio e transmitiu-o durante a noite da passada terça-feira. Lamento esta perda porque ele merece ser visto numa tela grande, com o cheiro da sala a impreguenar-nos, com gente a passar à nossa frente para sentar-se, com a possibilidade de ouvirmos os risos dos outros durante as cenas milamborantes que apresenta. Este filme respira vida, representa vida, e mostra-nos que o cinema português pode ser creativo, divertido, "popular", e complexo sem ser pseudo-intelectual.

No cerne da história encontramos uma família completamente disfuncional, onde o pai (António Capelo) e a mãe (Custódia Galego) encontram-se, ao mesmo tempo, numa crise de meia idade. Ele procura algo que não sabe explicar e que não tem, encontrando algo refúgio no ilusionismo; e ela procura o amor e desejo que não tem por parte do seu marido, o que lhe causa um conflicto interior de paixão, ódio, e ciúme. No meio temos uma família onde a filha Joana (Cleia Almeida) só quer ter paz e estar à vontade com o namorado Pankas (Alexandre Pintor, o actor revelação de "Os Mutantes"), um avô que estando no "inverno da vida" vê o aproximar da morte, recordando com saudade o passado e a felicidade sentida quando tinha as suas terras e o seu rebanho de ovelhas; e um bode que acompanha o avô por onde anda, mas que tem também a tendência de surgir nos locais mais estranhos e improváveis. Este núcleo familiar desequilibrado vê a chegada de Bárbara (Amélia Corôa), uma jovem com aspecto frágil (mas extremamente revoltada por um trauma familiar do passado) e não imaginam que será ela que irá criar o peso que faltava para "destruir" aquele castelo de cartas que sobrevive à custa de aparências.

O realizador António Ferreira já me teria surpreendido na sua curta-metragem "Respirar Debaixo de Água", onde mostra que para além de ser um bom contador de história, compreendendo a necessidade de silêncios e de diálogos, e também bom conhecedor das personagens, e mais do que isso, um orientador de actores. Graças à forma de visão deste realizador, que Portugal precisa muito no seu cinema, o espectador aproxima-se das personagens, conseguindo compreender e identificar-se com os seus estados de espírito. A sua mestria em "manipular" personagens permite-lhe misturar comédia e drama a roçar o trágico de uma forma que poucos conseguiriam. Este filme é prova, mostrando à medida que se vê que não é propriamente o filme fácil que esperava ao início... Mas aí é tarde, e o espectador está tão embrenhado no seu entusiasmo que já não tem coragem de fugir.

O mais mágico neste filme é que tudo tem um significado extremo, Messias (António Capelo) é o messageiro da mudança, e será o mensageiro da desgraça e o primeiro que aparentemente percebe a visão optimista de mudança que o filme encerra; Felizbela (Custódia Galego, que saliente-se, está maravilhosa e prova o quão subvalorizada esta actriz é) é o contrário do que o seu nome significa, mas procura desesperadamente o equilibrio consigo para poder encontrar a felicidade que tanto anseia; e Bárbara (Amélia Corôa) é destruidora sem sentido e sem causa, que sem qualquer conteúdo procura agarrar-se a qualquer sentimento para poder evitar o confronto e a memória do passado, já que sempre que o faz perde a consciência. António Ferreira mostra tudo isto com um sentido de humor fabuloso e hilariante, onde Custódia Galego seja ao apogeu com a sua "Felizbela" de cigarro sempre na boca...

"Esquece Tudo o que Te Disse" teve, infelizmente, uma participação pouca activa nos cinemas portuguesas, o que é de lamentar. Quando alguém falar sobre o estado do cinema português, por favor lembrem a essas pessoas este título, assim como "Os Imortais", que são marca das nossas potencialidades. Ainda assim, António Ferreira ganhou os Prémios de Talento e da Imprensa na sessão de 2003 dos Caminhos do Cinema Português.

Um óptimo filme para ver, apreciar, digerir e divulgar... Sem dúvida, uma das pérolas dos últimos anos no horizonte do cinema português.


4 estrelas
Muito Bom



Nuno Cargaleiro @ 23:17


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